sábado, 8 de março de 2014

Humanizar...


Era uma manhã de inverno, o frio tornava difícil a respiração e a locomoção, as pessoas tentavam se mexer constantemente a fim de aquecer o corpo, o que, na maioria dos casos, era inútil. No galpão onde ela estava alguns vidros quebrados deixavam aquele ar gélido circular pelo ambiente e a presença de vários rostos desconhecidos e aquela massa de corpos se movimentando faziam com que um frio inimaginável percorresse a sua espinha. As pessoas reclamavam da baixa temperatura no ambiente e ela simplesmente sorria. Sorria porque tinha a sensação de que o frio que emanava dela era bem pior.
Era tão medrosa! Não saía de casa sozinha depois que escurecia, sempre andava na rua olhando pra trás quando ouvia barulhos estranhos, mudava de calçada quando achava que quem vinha na sua direção era suspeito, e costumava suspeitar de todos. Não dormia sozinha em casa, trancava todas as portas e janelas e pediu um canivete de aniversário para se sentir protegida, pensando em afundar a lâmina na barriga de alguém que tentasse alguma coisa. E agora ela estava lá, no meio de tantos suspeitos, de tudo que temia quando saia de casa, de todos os seus pesadelos. E o fato de estar lá não fazia dela uma garota corajosa, porque por dentro sabia o medo que sentia, sabia o quanto lutava para controlar o tremor das mãos nervosas, para não gaguejar na fala, para manter o olhar sereno.
De repente, no meio de divagações e temores notou que a movimentação se aproximava mais dela. Sentou na cadeira da sala do diretor, imóvel. Levantou a cabeça e decidiu tentar enfrentar seus monstros internos e começou a observar atentamente aquele entra e sai de homens, cada um com uma história pra contar, com um possível erro, com um possível arrependimento, com uma vontade de começar de novo. Alguns traziam sorrisos no rosto e isso a conturbava  “como conseguiam sorrir lá?”. Outros estendiam as mãos cordialmente, lançavam um olhar curioso em sua direção, lhe cumprimentavam. E então o gelo dentro de si começou a derreter. Talvez não tivesse o que temer. E se permitiu conhecer o lugar, ver as faces, as expressões, ouvir as vozes, apertar as mãos e retribuir os sorrisos. Se permitiu simplesmente viver e não temer.
E com o tempo começou a se sentir um animal. Lembrou das várias vezes que viu reportagens na TV e que pensava: “Porque não trancam todos lá e jogam uma bomba?”, “Porque já não matam todos?”, “Que merda de direitos humanos que protege essas coisas!”. Naquela época ela costumava se sentir extraordinariamente humana, o que não acontecia mais hoje, depois de retomar todos esses pensamentos. E talvez nem devesse se sentir um animal, porque animais só atacam para se proteger ou por instinto, não racionalizam e vociferam frases tão monstruosas. Isso, ela era um monstro!
Agora olhava a sua volta, pensava nas muralhas que estavam lá fora, nos vários portões que cruzava para chegar até o galpão, e que nunca tinha conseguido contar exatamente quantos eram. Não contava porque quando chegava na direção do pátio, aquele fluxo de pessoas andando em círculos tão lentamente desviava sua atenção das grades e portões. Tentava imaginar o que se passava naquelas cabeças, o que moviam aqueles passos, o que teriam feito antes e o que fariam depois. E se pegava num constante fluxo de pensamentos que a tirava momentaneamente do ar.
Se sentia tão monstruosa por algumas vezes ter desejado a morte daqueles homens. Isso apertava o peito, lhe tirava o ar, lhe dava vontade de chorar, de pedir perdão a um por um por aqueles pensamentos hediondos. Mal sabia ela que lá dentro encontraria poetas tão maravilhosos quanto Pessoa, sua pessoa favorita; atores tão bons quanto seus velhos amigos do curso de teatro; artesãos tão fantásticos quanto o seu falecido avô; conversas tão inteligentes e filosóficas que nem com os colegas de faculdade conseguia ter.
As vezes tinha tanta vergonha de si e de seus pensamentos, que tinha vontade de pedir que fizessem com ela o que ela sempre imaginava “Hey, me tranquem aqui e me queimem, eu desejei isso pra vocês, eu não mereço que me respeitem!”. Só que sabia que ninguém a queimaria. Quando pisou lá, achou que era uma humana em uma jaula de animais, e agora percebeu que era um animal em uma jaula de humanos, humanos que a humanizaram.
E percebeu que aquela primeira impressão, que aquela sensação ruim tinha sumido e tinha dado lugar a uma “humanização”. Ela também tinha cometido erros, ela também tinha seus arrependimentos, ela também tinha agora a sua vontade de mudar e tudo isso ela devia àqueles caras.
Depois de rememorar tudo isso em outra manhã fria de inverno, levantou da cadeira sorrindo. Aquelas pessoas lá fora eram tão ignorantes, tão mesquinhas, tão fúteis. E então saiu andando pelo galpão, sem temor, sem frio, sem pesadelos, sem monstros, sem desejos de mortes. E simplesmente se permitiu sorrir, se permitiu não ser enganada por aparências ou por uma mídia manipuladora. Se permitiu reconhecer a humanidade e ser humana.

domingo, 5 de agosto de 2012

Estranhos sorrisos.

Pessoas estranhas sorriam para mim. Eu não me lembrava de nenhuma delas, daqueles braços, olhos, narizes, ou dos próprios sorrisos. Não sabia como eram as vozes, os cheiros, os nomes. Eram pessoas estranhas. Porém, se eram estranhas, porque sorriam para mim? Porque estavam lá, em porta-retratos, guardados no fundo de um baú com outras quinquilharias minhas, que não me eram estranhas?
Alguma coisa estava escrita em um dos porta-retratos, estava um pouco apagado mas dava para ler, e então enxerguei as palavras "Verão de 2009". E naquela foto muitas moças de biquini continuavam a sorrir, debaixo daquele sol escaldante, com os pés descalços na areia quente, e então senti os meus pés queimarem, porque um par de pernas lá era meu, meus pés também estavam na areia quente, meu sorriso estava congelado sorrindo para mim mesma agora, dez anos depois. Eu também era uma pessoa estranha naquela foto, quase irreconhecível.
Mais para baixo do baú havia outro porta-retratos, neste havia um esparadrapo escrito "Apresentação de 2008", e vários rostos brancos de bocas pretas me sorriam. Se já eram estranhos sem as máscaras, agora então, eram completos desconhecidos. Lembrei-me vagamente de que na época eu ia a um grupo de teatro, e me caracterizei quase daquele jeito. Devia ser isso, com certeza era isso. Mas ainda assim, eram estranhos.
Passaram-se mais de dez anos e eu não havia mais visto aqueles rostos, aqueles sorrisos. Talvez, alguma vez tenha sonhado com eles, lembrado bem vagamente, mas uma lembrança tão vaga que não acreditei que era de algo real do meu passado. 
Pelos sorrisos, deveriam ser estranhos agradáveis, estranhos que me fizeram feliz, que tinham boa relação comigo, mas que hoje, eram somente estranhos sorrindo.
Cogitei de jogar os retratos fora, mas não consegui, aqueles sorrisos estranhos e aqueles estranhos sorrindo tinham despertado alguma coisa em mim. Saudade? Talvez. Curiosidade? Mais provável. Afinal, quem eram? Como estavam hoje? O que faziam?  Era interessante olhar pra cada rosto e imaginar a vida que levavam, o emprego que tinham (ou não), os relacionamentos, os filhos. 
Acima de tudo, as fotos despertaram a imaginação. Rostos borrados, de lembranças apagadas, que eu podia fazer deles o que bem entendesse, podia criar neles amigos perfeitos, momentos perfeitos, que combinassem com o sorriso que me davam. 
Não lembrava mais deles, mas o importante é que eles ainda me faziam sorrir.

domingo, 11 de março de 2012

Tonto

A escada parecia estreita, dava a impressão de que se tentasse subir, encalharia entre as paredes como uma orca encalha em um banco de areia. Mas era necessário.
Moveu seu corpo esguio entre as paredes de pedra fria e começou a subir a escada, que fazia curvas sinuosas, as quais não permitiam ver o que tinha a frente. As curvas tornavam a subida um mistério.
Os braços as vezes eram arranhados pelas paredes que teimavam em se unir ainda mais em algumas partes da subida. Parecia que a qualquer momento elas tornariam-se apenas uma, apenas um muro barrando o caminho.
Sentiu então que os pés tocavam uma superfície diferente, e quando percebeu não pisava mais em degraus de madeira maciça, e sim em degraus de pedras; algumas pontiagudas que conseguiam machucar seus pés dentro dos tênis; outras que, mesmo no escuro, tinham um brilho que poderia levar a cegueira se observado por muito tempo. Após as pedras, veio a areia, que parecia tornar a subida pesada. Os pés se arrastavam para sair do meio do monte de areia e se mover até o próximo degrau, tornando a subida árdua; tinha a impressão de que já havia subido mais de cinquenta degraus de areia, e na verdade tinha subido apenas sete.
E a superfície constantemente ia mudando. Madeira, pedra, areia, ferro, grama, pano, plástico. E a ordem se invertia. Pedra, areia, ferro, grama, pano, plástico. Quando pensava que os pés descansariam em degraus como os de grama, para a sua surpresa a ordem invertia-se novamente. Areia, ferro, pedra, madeira, plástico, pano.
Não sabia mais se estava subindo ou descendo, ou se estava andando em círculos.
Plástico, areia, madeira, ferro, grama, pano.
Percebeu que os arranhões nos braços nem incomodavam mais, pois a sua preocupação estava nos pés, que o levariam adiante. Por degraus de pano, plástico, grama, madeira, ferro, areia.
Eram tantas curvas que já se sentia tonto. Tonto pela condição de estar com tontura, e tonto por ser um humano com ideias estupidas. E o fim nunca chegava para acabar com a tontura.
Se parasse de subir, a condição de estar tonto não mais existiria, afinal, pararia de fazer tantas curvas. Porém, seria mais estupidamente tonto, porque teria subido até lá, para nada.
Percebeu que em qualquer escolha que fizesse (pano, grama, plástico, madeira, pedra, ferro), seria e estaria tonto eternamente. Assim como o círculo vicioso dos degraus que nunca acabavam, assim como o círculo vicioso da poesia de Machado, assim como o círculo vicioso de sua vida que rodava, rodava, rodava. Nunca teria fim, nem os degraus, nem a poesia, nem a vida.
Eternamente tonto.

sábado, 10 de março de 2012

Memória

Estava em mais uma de suas crises depressivas. Tomava seus comprimidos com uma voracidade absurda, como se fosse um animal caçando alimento, porém era uma garota a procura de cura. Uma cura que não encontrava.
Sua cama era o refúgio para essas crises. Deitava-se e ficava a imaginar um mundo melhor, afim de animar-se com isso, e então levantar da cama toda saltitante e sorrindo para as pessoas; só que isso nunca acontecia. Na verdade as imaginações utópicas eram substituídas rapidamente por lembranças nostálgicas, que pioravam o quadro depressivo.
Em um de seus momentos de lembranças e imaginações, o sono dominou-a.
Subia rapidamente uma escada, com uma felicidade que ela não sabia de onde vinha, uma felicidade que não existia em sua vida há muito tempo. Um vulto surgiu na sua frente, e não teve tempo de se desviar, nem tempo de ver o que era o vulto, só sentiu a força de um corpo contra o seu próprio corpo. Foi tudo tão rápido. Sentiu o corpo rolar pelos degraus abaixo, e ouvia, com dor e assombro o estalar dos ossos quando se chocava no solo; até que no ultimo degrau ouviu um estalido quase metálico dentro de sua cabeça, e tudo apagou.
Acordou em uma cama de hospital, com pessoas estranhas a sua volta. Tentou lembrar o que havia acontecido, em vão. Chamou pela sua mãe, e a enfermeira lhe disse que a mãe morava em outra cidade porém estava a caminho. Estranho, pensava ela, não se lembrava de não morar mais com os pais.
Recebeu a visita de alguns amigos da faculdade, e se apavorou, porque não lembrava de ter passado no vestibular, nem de já ter ingressado na faculdade, não reconhecia nenhum daqueles rostos que se diziam amigos.
Foi então que o médico deu o aviso da perda de memória, e pelos exames e testes, tudo indicava que ela não lembrava de nada de seus últimos 5 anos de vida.
Ela agarrou fortemente as mãos na maca, respirou fundo e fechou os olhos, tentando lembrar alguma coisa.
Despertou.
As lágrimas lavavam sua face, não pelo sonho estranho e desagradável, mas sim pelo desespero em saber que suas memórias ainda estavam intactas e prontas para continuarem a machuca-la.

sábado, 3 de dezembro de 2011

7 anos

Dormia tranquilamente quando uma mão pequena e macia tocou delicadamente o meu rosto e despertou-me. Abri os olhos e me deparei com lindos olhos castanhos arregalados, que transmitiam um certo medo, e com um sorriso um pouco sem graça, onde notava a falta de dois dentinhos:
- Mamãe, sonhei com monstros, posso dormir com a senhora?
Ela era tão inocente, tão meiga, tão frágil, que até doía a ideia de perde-la pros monstros de seus pesadelos, por mais que eu soubesse que eles não existiam. Saí debaixo das cobertas, peguei ela no colo, aconcheguei-a na cama ao meu lado, e comecei a acariciar os seus cabelos, dizendo que ela não precisava ter medo. Passados alguns minutos ela já havia dormido e respirava tranquilamente, protegida de seus monstros imaginários.
Já tinha 7 anos, anos esses que passaram tão rápidos. Tinha a impressão de que ontem eu a carreguei em meus braços pela primeira vez. E agora ela já andava, falava, estudava, tinha seus amigos, e toda uma vida. Como 7 anos mudam as coisas! E como seria dali mais 7? Ela teria 14 anos, provavelmente teria alguns paqueras, estaria se formando no ensino fundamental, não teria mais medo dos monstros dos sonhos e não viria à minha cama com olhos assustados pedindo para dormir comigo.
Senti um pouco de saudade dos anos anteriores, da minha menininha que não saia da barra da minha saia, que me pedia pra brincar de boneca com ela, que segurava a minha mão pra atravessar a rua, que pra tudo gritava "mamãe", e então senti medo pelo futuro. Sabia que não poderia ser eternamente assim, afinal, dizem que criamos os filhos pro mundo, e assim já estava sendo.
Ela criava asas, e um dia alçaria voo. E com 7, 14, 21 anos ou mais, eu nunca deixaria de ama-la!

~~ //~~
7 anos de saudade ♥ Suzana



sábado, 12 de novembro de 2011

Missão

Despertei sentindo as mãos e os pés adormecidos, a boca estava seca e pegajosa, tinha a impressão de que havia caído de boca aberta nas areias do deserto e ficado lá por horas. Falando em horas, não fazia ideia de quanto tempo estive adormecida, talvez foram só minutos, mas considerava a probabilidade de terem sido dias. Abri as pálpebras com muito esforço, estavam absurdamente pesadas.
Escuridão. Não enxergava nada, a não ser sombras negras por toda a parte, porém não era a falta de claridade que me assustava, e sim um par de olhos completamente brancos que se destacava no meio de todo aquele breu, e que cada vez se aproximava mais.
Era vã a tentativa de mover os braços, colocar as pernas para correr ou pronunciar alguma palavra. Os membros não me obedeciam. Pensei em respirar fundo para me acalmar, e então tive uma pequena percepção de que eu não estava respirando, de que as narinas não inalavam os cheiros a minha volta, oxigênio não entrava para o meu corpo. E como eu ainda estava processando todos aqueles pensamentos se não conseguia respirar? E o mais estranho, eu não sentia falta de ar, eu não sentia necessidade de respirar.
Em meio a todo turbilhão de pensamentos e percepções novas, aqueles olhos totalmente brancos já se encontravam frente ao meu. Dois passos, acho que só isso separavam meus olhos verdes daqueles olhos assustadores, sem cor, sem pupilas.
Uma voz fina invadiu o ar, e senti um hálito quente no meu rosto, mais quente do que quando eu abria o forno de casa para tirar um bolo:
- Tão nova, tão linda. Ah garota tola, porque fez isso?
Eu era a garota tola? Se era, o que eu tinha feito? Não sei como percebia isso, mas aqueles olhos me miravam com ar de desaprovação e ao mesmo tempo de dó. Eram brancos e ainda expressavam tudo isso. Assustador. Assustadoramente assustador.
- Eu imagino que você ainda não consiga falar, é tudo muito novo pra você. Vou te ajudar.
De repente o branco dos olhos invadiu toda a minha vista, agora tudo era claridade, não havia mais escuridão, e em um instante eu me vi deitada no asfalto quente, a roupa suja com uma bela quantidade de sangue, as pernas estavam torcidas e anormais para um ser humano. Porque eu estava lá deitada daquela maneira?
E então tirei o foco do meu corpo e observei toda a cena. A minha frente havia um carro prata, com a frente muito amassada e pontilhada de sangue. Do meu lado algumas pessoas levavam as mãos à cabeça, viravam o pescoço para os lados, reprimiam um choro.
Toda aquela comoção começou a me tomar e eu esqueci de tentar entender o que acontecia, quando fui sugada para a escuridão.
Agora era possível ver o dono dos olhos brancos. Um homem alto e careca, que usava uma túnica negra e aparentemente não tinha os membros inferiores. Acho que era preferível ter a visão somente dos olhos.
- Você ainda não entendeu doce criança?
Já era possível me mover, e então apoiei as mãos lentamente ao lado do corpo, impulsionando o tórax para frente, a fim de sentar-me. Depois de um tempo sentada e pensando na cena, não era capaz de compreender aquilo, e olhei novamente para aquela criatura assustadora.
Ele sorriu, um sorriso que não mostrava dentes, apenas uma gengiva muito saliente e vermelha.
- Uma linda e doce adolescente, muito apaixonada, não aguentou ser desprezada pelo amor de sua vida, e então jogou-se na frente de um carro em uma linda manhã de segunda-feira. Plaf, o carro arremessou-a e ainda esmagou suas perninhas.
Eu lembrei, e a dor tomou conta de cada osso, musculo e nervo do meu corpo. Eu tinha me suicidado!
- Aqui é o inferno não é? Afinal, os suicidas vão para o inferno.
- Não - gritou a criatura, com um tom raivoso - Você não morreu ainda, embora eu quisesse já tê-la matado!
- Não entendo - e realmente não entendia, onde estava se não estava morta?
- Você está em coma há alguns dias, os médicos dizem que a chance de você sobreviver é nula. E assim eu espero que seja - deu uma pausa longa, pigarreou, olhou os meus olhos e continuou - A sua missão na Terra era simples minha doçura, e de toda forma a sua vida teria um fim dentro de alguns meses, só que você, muito burra, decidiu dar fim ao seu destino antecipadamente.
- Missão? Fim dentro de meses? - um pesadelo insano, era isso. Eu iria acordar!
- A sua missão, minha jovem, era ensinar aquele rapaz, que você amava, a andar com as próprias pernas. Era mostrar a ele que ele tinha capacidade para tudo, era tirar ele daquela comodidade e mostra-lo a vida. E você cumpriu com a sua missão, então...
Não deixei que ele terminasse de explicar mais nada, a raiva explodia no peito:
- Ensinei tão bem a usar as pernas, que usou uma delas para meter na minha bunda e mandar-me pra longe da vida dele.
- Sim - e um riso irônico tomou conta do ambiente - confesso que você realizou sua missão melhor que o esperado. E, como a sua missão era essa, você não tinha mais utilidade na Terra, e morreria dentro de cinco dias, de causas naturais, sem sofrimento.
- Sem sofrimento? Acha mesmo que não sofri quando ele pegou as pernas que eu ensinei-o a usar e meteu-as na minha bunda? Acha que não sofri vendo ele ser feliz com outra e realizando os nossos planos, meus e dele, com outra? Você não tem coração e não ama, por isso você diz sem sofrimento.
Percebi que estava em pé, sem qualquer tipo de dor pelo corpo, somente raiva. Raiva de mim, raiva daquela criatura na minha frente, raiva daquele moleque idiota que apareceu na minha vida, raiva dessa missão ridícula.
- E então, se eu iria morrer daqui cinco dias, e eu adiantei as coisas, porque o coma? Porque já não me levam pro inferno?
Os olhos brancos me fitaram com ironia e desdém. As gengivas salientes e vermelhas apareceram novamente naquele rosto assombroso:
- Você não vai morrer agora porque ele vai se sentir culpado, e isso não estava previsto no destino e na missão dele, sentir culpa pela morte da tolinha ex-namorada. Esse é o único motivo de estarmos conversando, para deixar bem avisado que você está proibida de tentar se matar novamente. Pare de interromper o ciclo natural.
Ridículo, tudo aquilo era ridículo. O cenário, o cara, a história, a missão. Ridículo.
- Fique calma, você não vai se lembrar disso quando despertar do coma, não vai lembrar de nada dessas coisas que está achando ridícula. Só vai se lembrar de que está proibida de tentar o suicídio!
A voz dele foi ficando fraca, os olhos foram se distanciando e sua forma se desfazendo na escuridão. Que vida desgraçada a minha, ter nascido só para ser útil a alguém e não ganhar nada com isso, eu ia me lembrar de tudo quando despertasse do coma e tentaria me matar de novo, e de novo, e de nov...

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Rosas murchas

Olho para as rosas no chão, estão murchas e cinzas, assim como ficou o meu coração. Talvez dentro do buquê ainda tenha espaço para alguma cor, para alguma vida renascer, mas dentro do meu coração só espaço para o escuro e para a dor.
E eu, que sempre acreditei que sentimentos eram fáceis de controlar, que sempre acreditei que ao estalar os dedos amaria ou desamaria uma pessoa, que sempre acreditei que não haveria amor maior que aquele que meu deu as rosas.
Ilusão! Me iludi com rosas, com amor. Iludi a alma e o coração.
Acreditei em sorrisos, em palavras, em passeios de mãos dadas e em promessas.
Fui julgada e acusada. Arremessaram palavras ásperas na minha face, como se o meu coração não fosse vivo, fosse uma rocha, sólida e cinza, contudo ele ainda era vermelho-sangue.
Usaram a palavra NUNCA para meus atos que eram tão constantes. Sim, eu acreditei no amor, eu acreditei em tudo o que eu vivia, se eu não acreditasse, não teria lutado.
E hoje, hoje acredito que o NUNCA não era para mim, o nunca era para ele mesmo.
Por algum tempo ainda admirarei as rosas murchas, que ficarão marrons, que secarão, que virarão pó; e pó também virará o meu amor, que foi trocado por tristeza, por desprezo, por um principio de raiva, ódio, incompreensão.
Só as lembranças não virarão pó, entretanto se tornarão cinza, e uma hora eu NUNCA relembrarei a cor que aqueles meses tiveram em minha vida, assim como não hei de lembrar a cor das rosas murchas.