sábado, 12 de novembro de 2011

Missão

Despertei sentindo as mãos e os pés adormecidos, a boca estava seca e pegajosa, tinha a impressão de que havia caído de boca aberta nas areias do deserto e ficado lá por horas. Falando em horas, não fazia ideia de quanto tempo estive adormecida, talvez foram só minutos, mas considerava a probabilidade de terem sido dias. Abri as pálpebras com muito esforço, estavam absurdamente pesadas.
Escuridão. Não enxergava nada, a não ser sombras negras por toda a parte, porém não era a falta de claridade que me assustava, e sim um par de olhos completamente brancos que se destacava no meio de todo aquele breu, e que cada vez se aproximava mais.
Era vã a tentativa de mover os braços, colocar as pernas para correr ou pronunciar alguma palavra. Os membros não me obedeciam. Pensei em respirar fundo para me acalmar, e então tive uma pequena percepção de que eu não estava respirando, de que as narinas não inalavam os cheiros a minha volta, oxigênio não entrava para o meu corpo. E como eu ainda estava processando todos aqueles pensamentos se não conseguia respirar? E o mais estranho, eu não sentia falta de ar, eu não sentia necessidade de respirar.
Em meio a todo turbilhão de pensamentos e percepções novas, aqueles olhos totalmente brancos já se encontravam frente ao meu. Dois passos, acho que só isso separavam meus olhos verdes daqueles olhos assustadores, sem cor, sem pupilas.
Uma voz fina invadiu o ar, e senti um hálito quente no meu rosto, mais quente do que quando eu abria o forno de casa para tirar um bolo:
- Tão nova, tão linda. Ah garota tola, porque fez isso?
Eu era a garota tola? Se era, o que eu tinha feito? Não sei como percebia isso, mas aqueles olhos me miravam com ar de desaprovação e ao mesmo tempo de dó. Eram brancos e ainda expressavam tudo isso. Assustador. Assustadoramente assustador.
- Eu imagino que você ainda não consiga falar, é tudo muito novo pra você. Vou te ajudar.
De repente o branco dos olhos invadiu toda a minha vista, agora tudo era claridade, não havia mais escuridão, e em um instante eu me vi deitada no asfalto quente, a roupa suja com uma bela quantidade de sangue, as pernas estavam torcidas e anormais para um ser humano. Porque eu estava lá deitada daquela maneira?
E então tirei o foco do meu corpo e observei toda a cena. A minha frente havia um carro prata, com a frente muito amassada e pontilhada de sangue. Do meu lado algumas pessoas levavam as mãos à cabeça, viravam o pescoço para os lados, reprimiam um choro.
Toda aquela comoção começou a me tomar e eu esqueci de tentar entender o que acontecia, quando fui sugada para a escuridão.
Agora era possível ver o dono dos olhos brancos. Um homem alto e careca, que usava uma túnica negra e aparentemente não tinha os membros inferiores. Acho que era preferível ter a visão somente dos olhos.
- Você ainda não entendeu doce criança?
Já era possível me mover, e então apoiei as mãos lentamente ao lado do corpo, impulsionando o tórax para frente, a fim de sentar-me. Depois de um tempo sentada e pensando na cena, não era capaz de compreender aquilo, e olhei novamente para aquela criatura assustadora.
Ele sorriu, um sorriso que não mostrava dentes, apenas uma gengiva muito saliente e vermelha.
- Uma linda e doce adolescente, muito apaixonada, não aguentou ser desprezada pelo amor de sua vida, e então jogou-se na frente de um carro em uma linda manhã de segunda-feira. Plaf, o carro arremessou-a e ainda esmagou suas perninhas.
Eu lembrei, e a dor tomou conta de cada osso, musculo e nervo do meu corpo. Eu tinha me suicidado!
- Aqui é o inferno não é? Afinal, os suicidas vão para o inferno.
- Não - gritou a criatura, com um tom raivoso - Você não morreu ainda, embora eu quisesse já tê-la matado!
- Não entendo - e realmente não entendia, onde estava se não estava morta?
- Você está em coma há alguns dias, os médicos dizem que a chance de você sobreviver é nula. E assim eu espero que seja - deu uma pausa longa, pigarreou, olhou os meus olhos e continuou - A sua missão na Terra era simples minha doçura, e de toda forma a sua vida teria um fim dentro de alguns meses, só que você, muito burra, decidiu dar fim ao seu destino antecipadamente.
- Missão? Fim dentro de meses? - um pesadelo insano, era isso. Eu iria acordar!
- A sua missão, minha jovem, era ensinar aquele rapaz, que você amava, a andar com as próprias pernas. Era mostrar a ele que ele tinha capacidade para tudo, era tirar ele daquela comodidade e mostra-lo a vida. E você cumpriu com a sua missão, então...
Não deixei que ele terminasse de explicar mais nada, a raiva explodia no peito:
- Ensinei tão bem a usar as pernas, que usou uma delas para meter na minha bunda e mandar-me pra longe da vida dele.
- Sim - e um riso irônico tomou conta do ambiente - confesso que você realizou sua missão melhor que o esperado. E, como a sua missão era essa, você não tinha mais utilidade na Terra, e morreria dentro de cinco dias, de causas naturais, sem sofrimento.
- Sem sofrimento? Acha mesmo que não sofri quando ele pegou as pernas que eu ensinei-o a usar e meteu-as na minha bunda? Acha que não sofri vendo ele ser feliz com outra e realizando os nossos planos, meus e dele, com outra? Você não tem coração e não ama, por isso você diz sem sofrimento.
Percebi que estava em pé, sem qualquer tipo de dor pelo corpo, somente raiva. Raiva de mim, raiva daquela criatura na minha frente, raiva daquele moleque idiota que apareceu na minha vida, raiva dessa missão ridícula.
- E então, se eu iria morrer daqui cinco dias, e eu adiantei as coisas, porque o coma? Porque já não me levam pro inferno?
Os olhos brancos me fitaram com ironia e desdém. As gengivas salientes e vermelhas apareceram novamente naquele rosto assombroso:
- Você não vai morrer agora porque ele vai se sentir culpado, e isso não estava previsto no destino e na missão dele, sentir culpa pela morte da tolinha ex-namorada. Esse é o único motivo de estarmos conversando, para deixar bem avisado que você está proibida de tentar se matar novamente. Pare de interromper o ciclo natural.
Ridículo, tudo aquilo era ridículo. O cenário, o cara, a história, a missão. Ridículo.
- Fique calma, você não vai se lembrar disso quando despertar do coma, não vai lembrar de nada dessas coisas que está achando ridícula. Só vai se lembrar de que está proibida de tentar o suicídio!
A voz dele foi ficando fraca, os olhos foram se distanciando e sua forma se desfazendo na escuridão. Que vida desgraçada a minha, ter nascido só para ser útil a alguém e não ganhar nada com isso, eu ia me lembrar de tudo quando despertasse do coma e tentaria me matar de novo, e de novo, e de nov...

Nenhum comentário:

Postar um comentário