domingo, 11 de março de 2012

Tonto

A escada parecia estreita, dava a impressão de que se tentasse subir, encalharia entre as paredes como uma orca encalha em um banco de areia. Mas era necessário.
Moveu seu corpo esguio entre as paredes de pedra fria e começou a subir a escada, que fazia curvas sinuosas, as quais não permitiam ver o que tinha a frente. As curvas tornavam a subida um mistério.
Os braços as vezes eram arranhados pelas paredes que teimavam em se unir ainda mais em algumas partes da subida. Parecia que a qualquer momento elas tornariam-se apenas uma, apenas um muro barrando o caminho.
Sentiu então que os pés tocavam uma superfície diferente, e quando percebeu não pisava mais em degraus de madeira maciça, e sim em degraus de pedras; algumas pontiagudas que conseguiam machucar seus pés dentro dos tênis; outras que, mesmo no escuro, tinham um brilho que poderia levar a cegueira se observado por muito tempo. Após as pedras, veio a areia, que parecia tornar a subida pesada. Os pés se arrastavam para sair do meio do monte de areia e se mover até o próximo degrau, tornando a subida árdua; tinha a impressão de que já havia subido mais de cinquenta degraus de areia, e na verdade tinha subido apenas sete.
E a superfície constantemente ia mudando. Madeira, pedra, areia, ferro, grama, pano, plástico. E a ordem se invertia. Pedra, areia, ferro, grama, pano, plástico. Quando pensava que os pés descansariam em degraus como os de grama, para a sua surpresa a ordem invertia-se novamente. Areia, ferro, pedra, madeira, plástico, pano.
Não sabia mais se estava subindo ou descendo, ou se estava andando em círculos.
Plástico, areia, madeira, ferro, grama, pano.
Percebeu que os arranhões nos braços nem incomodavam mais, pois a sua preocupação estava nos pés, que o levariam adiante. Por degraus de pano, plástico, grama, madeira, ferro, areia.
Eram tantas curvas que já se sentia tonto. Tonto pela condição de estar com tontura, e tonto por ser um humano com ideias estupidas. E o fim nunca chegava para acabar com a tontura.
Se parasse de subir, a condição de estar tonto não mais existiria, afinal, pararia de fazer tantas curvas. Porém, seria mais estupidamente tonto, porque teria subido até lá, para nada.
Percebeu que em qualquer escolha que fizesse (pano, grama, plástico, madeira, pedra, ferro), seria e estaria tonto eternamente. Assim como o círculo vicioso dos degraus que nunca acabavam, assim como o círculo vicioso da poesia de Machado, assim como o círculo vicioso de sua vida que rodava, rodava, rodava. Nunca teria fim, nem os degraus, nem a poesia, nem a vida.
Eternamente tonto.

sábado, 10 de março de 2012

Memória

Estava em mais uma de suas crises depressivas. Tomava seus comprimidos com uma voracidade absurda, como se fosse um animal caçando alimento, porém era uma garota a procura de cura. Uma cura que não encontrava.
Sua cama era o refúgio para essas crises. Deitava-se e ficava a imaginar um mundo melhor, afim de animar-se com isso, e então levantar da cama toda saltitante e sorrindo para as pessoas; só que isso nunca acontecia. Na verdade as imaginações utópicas eram substituídas rapidamente por lembranças nostálgicas, que pioravam o quadro depressivo.
Em um de seus momentos de lembranças e imaginações, o sono dominou-a.
Subia rapidamente uma escada, com uma felicidade que ela não sabia de onde vinha, uma felicidade que não existia em sua vida há muito tempo. Um vulto surgiu na sua frente, e não teve tempo de se desviar, nem tempo de ver o que era o vulto, só sentiu a força de um corpo contra o seu próprio corpo. Foi tudo tão rápido. Sentiu o corpo rolar pelos degraus abaixo, e ouvia, com dor e assombro o estalar dos ossos quando se chocava no solo; até que no ultimo degrau ouviu um estalido quase metálico dentro de sua cabeça, e tudo apagou.
Acordou em uma cama de hospital, com pessoas estranhas a sua volta. Tentou lembrar o que havia acontecido, em vão. Chamou pela sua mãe, e a enfermeira lhe disse que a mãe morava em outra cidade porém estava a caminho. Estranho, pensava ela, não se lembrava de não morar mais com os pais.
Recebeu a visita de alguns amigos da faculdade, e se apavorou, porque não lembrava de ter passado no vestibular, nem de já ter ingressado na faculdade, não reconhecia nenhum daqueles rostos que se diziam amigos.
Foi então que o médico deu o aviso da perda de memória, e pelos exames e testes, tudo indicava que ela não lembrava de nada de seus últimos 5 anos de vida.
Ela agarrou fortemente as mãos na maca, respirou fundo e fechou os olhos, tentando lembrar alguma coisa.
Despertou.
As lágrimas lavavam sua face, não pelo sonho estranho e desagradável, mas sim pelo desespero em saber que suas memórias ainda estavam intactas e prontas para continuarem a machuca-la.