terça-feira, 30 de agosto de 2011

Escada

As crianças corriam alegremente pelo pátio da escola, era hora do intervalo, e todos os intervalos eram iguais. Da cozinha vinha o cheiro do leite quente, do pão com manteiga. Do banheiro, o cheiro fétido de urina. Das bocas das crianças vinham os gritos, os risos, as fofocas, os segredos, os beijos escondidos atrás do muro. Do inspetor vinha a calma, a observação, a capacidade de fingir que nada de errado havia, ou a real capacidade de não deixar nada de errado acontecer. Do canto, mais frio e mais distante de todos os cheiros, de todos os barulhos, de todas as bocas e olhos, estava ela.
Antes nunca tinha notado aquele canto da escola, porque estava no meio de toda aquela festa que era o intervalo. Nunca tinha notado como era gostoso sentir o sol da manhã na sua pele, como era algo mecânico e fascinante subir uma escada. Escada. Era lá, na frente da escada que ela estava sentada, e admirando os degraus acima.
Um homem se aproximou:
- Porque está admirando tanto a escada? - indagou
Ela tinha vergonha de responder, só tinha os olhos marejados. Há alguns meses ela reclamava de ter que subir e descer as escadas para trocar de salas ou para o intervalo. Hoje, sentia de não poder subir as escadas. E como explicaria isso para ele? Não, os pés dele se movimentavam, ele nunca tinha percebido como era gostoso subir uma escada, a sensação de ir cada vez mais alto, de subir, de atingir o céu. Ele nunca olhou as escadas com outros olhos, como ela olhava agora.
- Tem alguma coisa aí que eu não estou vendo? - insistiu ele.
Sim, claro que tinha. Tinha o sonho dela de voltar a andar, de levantar daquela cadeira de rodas e poder colocar os pés no chão, de sentir as articulações do seu corpo se movendo naturalmente, pé ante pé subindo os degraus. Subindo. Indo mais alto, indo ao topo, indo ao céu. Havia muito mais em uma escada do que simples degraus. E como antes, achando todos seus pensamentos e sonhos ridículos, não respondeu isso a ele, apenas balançou a cabeça negativamente.
O sinal anunciou o fim do intervalo, o fim dos cheiros diversos, das vozes variadas, o fim da festa.
Braços vieram na direção dela, carregaram seu pequeno corpo em cima daquela cadeira até o topo da escada para que pudesse assistir a aula. Por mais que fosse magra, sabia que com a cadeira se tornava pesada, e não era simples para aqueles braços, por mais másculos e fortes que fossem, carrega-la até o ultimo degrau.
Deu um leve sorriso quando chegou no topo e um dos braços másculos que carregou a cadeira se massageou, se agitou freneticamente tentando escapar da dor. Porque ela sabia que o dono daqueles braços entendia o sonho dela, ele com certeza não via mais uma escada como um simples conjunto de degraus, ele sentia os obstáculos e as dificuldades de cada movimento, ele sentia como era difícil chegar ao fim, talvez ele sonhasse em, de uma forma mais fácil, subir aquelas escadas.
Percebeu que seus sonhos não eram ridículos. Que sonhos nunca são ridículos, por mais que envolvam subir uma escada.
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