Era uma manhã de inverno, o frio tornava difícil a respiração e a
locomoção, as pessoas tentavam se mexer constantemente a fim de aquecer o
corpo, o que, na maioria dos casos, era inútil. No galpão onde ela estava
alguns vidros quebrados deixavam aquele ar gélido circular pelo ambiente e a
presença de vários rostos desconhecidos e aquela massa de corpos se
movimentando faziam com que um frio inimaginável percorresse a sua espinha. As
pessoas reclamavam da baixa temperatura no ambiente e ela simplesmente sorria.
Sorria porque tinha a sensação de que o frio que emanava dela era bem pior.
Era tão medrosa! Não saía de casa sozinha depois que escurecia, sempre
andava na rua olhando pra trás quando ouvia barulhos estranhos, mudava de
calçada quando achava que quem vinha na sua direção era suspeito, e costumava
suspeitar de todos. Não dormia sozinha em casa, trancava todas as portas e
janelas e pediu um canivete de aniversário para se sentir protegida, pensando
em afundar a lâmina na barriga de alguém que tentasse alguma coisa. E agora ela
estava lá, no meio de tantos suspeitos, de tudo que temia quando saia de casa,
de todos os seus pesadelos. E o fato de estar lá não fazia dela uma garota
corajosa, porque por dentro sabia o medo que sentia, sabia o quanto lutava para
controlar o tremor das mãos nervosas, para não gaguejar na fala, para manter o
olhar sereno.
De repente, no meio de divagações e temores notou que a movimentação
se aproximava mais dela. Sentou na cadeira da sala do diretor, imóvel. Levantou
a cabeça e decidiu tentar enfrentar seus monstros internos e começou a observar
atentamente aquele entra e sai de homens, cada um com uma história pra contar,
com um possível erro, com um possível arrependimento, com uma vontade de
começar de novo. Alguns traziam sorrisos no rosto e isso a conturbava “como
conseguiam sorrir lá?”. Outros estendiam as mãos cordialmente, lançavam um
olhar curioso em sua direção, lhe cumprimentavam. E então o gelo dentro de si
começou a derreter. Talvez não tivesse o que temer. E se permitiu conhecer o
lugar, ver as faces, as expressões, ouvir as vozes, apertar as mãos e retribuir
os sorrisos. Se permitiu simplesmente viver e não temer.
E com o tempo começou a se sentir um animal. Lembrou das várias vezes
que viu reportagens na TV e que pensava: “Porque não trancam todos lá e jogam
uma bomba?”, “Porque já não matam todos?”, “Que merda de direitos humanos que
protege essas coisas!”. Naquela época ela costumava se sentir
extraordinariamente humana, o que não acontecia mais hoje, depois de retomar
todos esses pensamentos. E talvez nem devesse se sentir um animal, porque animais
só atacam para se proteger ou por instinto, não racionalizam e vociferam frases
tão monstruosas. Isso, ela era um monstro!
Agora olhava a sua volta, pensava nas muralhas que estavam lá fora,
nos vários portões que cruzava para chegar até o galpão, e que nunca tinha
conseguido contar exatamente quantos eram. Não contava porque quando chegava na
direção do pátio, aquele fluxo de pessoas andando em círculos tão lentamente
desviava sua atenção das grades e portões. Tentava imaginar o que se passava
naquelas cabeças, o que moviam aqueles passos, o que teriam feito antes e o que
fariam depois. E se pegava num constante fluxo de pensamentos que a tirava
momentaneamente do ar.
Se sentia tão monstruosa por algumas vezes ter desejado a morte daqueles
homens. Isso apertava o peito, lhe tirava o ar, lhe dava vontade de chorar, de
pedir perdão a um por um por aqueles pensamentos hediondos. Mal sabia ela que
lá dentro encontraria poetas tão maravilhosos quanto Pessoa, sua pessoa
favorita; atores tão bons quanto seus velhos amigos do curso de teatro;
artesãos tão fantásticos quanto o seu falecido avô; conversas tão inteligentes
e filosóficas que nem com os colegas de faculdade conseguia ter.
As vezes tinha tanta vergonha de si e de seus pensamentos, que tinha
vontade de pedir que fizessem com ela o que ela sempre imaginava “Hey, me
tranquem aqui e me queimem, eu desejei isso pra vocês, eu não mereço que me
respeitem!”. Só que sabia que ninguém a queimaria. Quando pisou lá, achou que
era uma humana em uma jaula de animais, e agora percebeu que era um animal em
uma jaula de humanos, humanos que a humanizaram.
E percebeu que aquela primeira impressão, que aquela sensação ruim
tinha sumido e tinha dado lugar a uma “humanização”. Ela também tinha cometido
erros, ela também tinha seus arrependimentos, ela também tinha agora a sua
vontade de mudar e tudo isso ela devia àqueles caras.
Depois de rememorar tudo isso em outra manhã fria de inverno, levantou
da cadeira sorrindo. Aquelas pessoas lá fora eram tão ignorantes, tão
mesquinhas, tão fúteis. E então saiu andando pelo galpão, sem temor, sem frio,
sem pesadelos, sem monstros, sem desejos de mortes. E simplesmente se permitiu
sorrir, se permitiu não ser enganada por aparências ou por uma mídia
manipuladora. Se permitiu reconhecer a humanidade e ser humana.